Primeiros Capítulos – O Legado de Avalon – O Garoto, O Velho e A Espada

O Legado de Avalon

 

Livro I: O Garoto, O Velho e A Espada

 

Prólogo

 

            O céu cinzento ocultava praticamente toda a luz do sol, as nuvens percorrendo rápido o firmamento como se, horrorizadas, não quisessem contemplar o triste cenário desenhado em terra. Sobre o solo, uma neblina um tanto espessa também flutuava – as brumas parecendo ter pressa em esconder o que ali acontecera de quem quer que fosse, como se formasse um lençol de vapor.

A verdade era que, se aquela neblina fosse mesmo um lençol, então ele logo estaria todo manchado de vermelho…

A planície de Camlann estava repleta de corpos, milhares de homens tendo ali tombado sem que suas armaduras e escudos de metal pudessem valer por eles. Cavalos também se encontravam caídos imóveis aqui e ali, os pobres animais perdendo a vida em meio ao confronto violento daqueles que os haviam cavalgado. Entre espadas partidas ao meio e lanças destroçadas, alguns guerreiros à beira da morte ainda erguiam seus braços ou tentavam levantar a cabeça para descobrir qual lado vencera – o espírito da luta prevalecendo apesar de tudo. Os símbolos que traziam em seus escudos e flâmulas, como era costume, representavam o exército pelo qual haviam lutado: naquele caso, a silhueta de um feroz dragão vermelho costurado sobre fundo branco em alguns; e uma balança dourada sobre fundo rubro nos outros.

Foi num escudo oval que possuía esse último emblema que o pé revestido de aço do cavaleiro, caminhando pelo cenário devastado, pisou naquele momento, fazendo o leve som da batida ecoar feito a marcha de um exército devido ao silêncio que predominava na planície. Olhando para o símbolo, o soldado sentiu nojo e cuspiu. Aquele desenho conseguia lhe ser mais repugnante que todo aquele massacre – o qual já atraía os primeiros corvos, voando em torno do cenário metros acima enquanto aguardavam o momento de se banquetear. Tratava-se do brasão do Usurpador, o traidor que causara tudo aquilo. O cavaleiro rogava tanto aos antigos deuses dos celtas quanto ao novo deus dos romanos para que o infeliz houvesse encontrado seu castigo, mas não era pelo corpo dele que ele procurava naquele momento. Entre outros possíveis sobreviventes – seus amigos, companheiros juramentados da Távola Redonda – Bedivere buscava acima de tudo seu rei.

Os cavaleiros de Camelot haviam chegado unidos e em formação a Camlann; porém era sabido desde os tempos mais antigos ser difícil manter consciência do que acontece ao redor durante a agitação de uma batalha. Bedivere se lançara contra os inimigos ombro a ombro com Percival e Bors, o Jovem, no entanto perdera os companheiros de vista ao ser cercado pelos homens do Usurpador – tendo de abrir caminho entre eles com sua espada enquanto via vários guerreiros de ambos os lados caírem. Tinha agora a armadura toda suja de sangue, o corpo dolorido e um corte um tanto profundo num dos braços, que não latejava tanto quanto a triste descoberta de ter sido um dos poucos cavaleiros da Távola Redonda sobreviventes. Mas, se não tinha como objetivo primordial encontrar mais de seus colegas que haviam sido igualmente poupados, não queria da mesma forma tropeçar em seus cadáveres. Se existia alguma palavra que o forçava a continuar se movendo pela terrível paisagem, naquele momento, era apenas uma…

– Arthur!

Gritou pelo rei, na esperança de que fosse respondido com outra exclamação, no mínimo um aceno. Sua voz cheia de penúria, porém, ecoou solitária pela imensidão da planície; sendo ouvida, além dos poucos ainda vivos, apenas pelos fantasmas dos que haviam partido. Porém não desistiu. Bedivere não estivera entre aqueles cavaleiros que anos antes haviam encontrado o Santo Graal – artefato sagrado tão importante – depois de desafios e mais desafios, mas não era por isso que se mostrava alguém capaz de abrir mão facilmente do que buscava. Continuou andando, pisando em escudos, elmos, peitorais. Momentos se passaram em meio à bruma, e o fato de o bravo cavaleiro nada encontrar fez com que fosse tomado por algo que estava longe de querer: o desespero. Seus passos se tornaram mais apressados, pesados, e por pouco não caiu duas vezes ao enroscar os pés em estandartes arruinados. Rogou de novo aos deuses, pedindo para que o grande Rei Arthur houvesse sido resguardado da terrível sombra da morte…

Até que avistou.

Havia uma área mais exposta da planície destruída que lembrava a clareira de uma floresta, os corpos mais próximos tendo formado uma espécie de círculo de alguns metros de diâmetro em torno do local – revelando que em vida aqueles soldados haviam aberto espaço para que os líderes dos dois exércitos ali se enfrentassem sem a interferência de seus comandados. Bedivere viu primeiro Mordred, o vil Usurpador, estatelado junto ao solo, braços cobrindo o peito que provavelmente havia sido ferido mortalmente por Arthur. Sua pele estava pálida e os cabelos loiros encaracolados, agora expostos após o elmo ter caído, haviam perdido todo o brilho ao tocarem a terra suja. O Rei de Camelot, por sua vez, encontrava-se bem próximo ao inimigo derrotado… também estirado no chão e com sangue a lhe escorrer pela armadura, embora o leve movimento de seu peito gerado pela respiração revelasse que ainda vivia.

Bedivere apressou-se, esperançoso de que o ferimento não fosse grave. A verdade era que, mesmo após a hedionda Morgana ter roubado a bainha mágica que curava instantaneamente as feridas de seu senhor, este se mostrara forte e resistente quanto aos danos recebidos em batalha. Naquele caso não seria diferente, e o dragão da Bretanha mais uma vez tornaria a se erguer… Mas, conforme se aproximou e se abaixou junto a seu amado rei, Bedivere percebeu que naquela ocasião a fortuna se revelava amarga.

Arthur tinha o peitoral da armadura em pedaços, a cota de malha que vestia por baixo falhando em esconder a gravidade da ferida que tinha no peito: um grande corte diagonal que parecia bem profundo. Bedivere estremeceu, abaixando a cabeça enquanto apoiava os braços na própria espada. A lágrima mais salgada de sua vida rolou por seu rosto quando concluiu que o rei estava morrendo.

– Sir Bedivere…

A voz enfraquecida, porém sempre majestosa, de Arthur, o estava chamando. O cavaleiro enxugou a face com as costas da mão revestida de ferro e fitou seu soberano. Sabia que aquela poderia ser a última vez em que contemplaria o semblante de cabelos e barba loiros do rei, figura que tanto aprendera a admirar. O moribundo observava-o com um olhar firme, as pupilas azuis quase fazendo Bedivere congelar, enquanto pedia:

– Pegue Excalibur… Leve-a de volta… ao lago. Esse foi o acordo. Assim deve ser feito.

O soldado tornou a estremecer. Excalibur, a espada mágica do Rei Arthur – arma sublime que tanta inveja causara entre seus inimigos, incluindo Morgana e sua mais terrível cria, o Usurpador. Nem mesmo os próprios cavaleiros da Távola Redonda sabiam com certeza qual era a origem de tal dádiva, embora alguns especulassem – talvez por intriga – ter sido dada a Arthur – com intermédio do sábio mago Merlin, então desaparecido – pela entidade das águas a quem os celtas chamavam “Nimueh”, a Dama do Lago. Agora, em seus últimos momentos, Arthur confirmava a veracidade da história justamente a Bedivere, pedindo inclusive que ele devolvesse a espada à sua verdadeira dona.

– Meu rei, eu não sei se… – começou a responder o inseguro cavaleiro.

– Você deve – e Arthur, mesmo estando em suas últimas forças, frisou bem a palavra. – Pegue Excalibur. Tome um cavalo e siga até o lago que eu indicar… Ela precisa ser devolvida.

Tentando esticar um dos braços, gesto do qual logo desistiu devido a uma pontada de dor, o rei apontou para a arma, caída perto de si. Ao contrário do que muitos pensavam, Excalibur não era uma espada luxuosa ou rica – ao menos não dentro do conceito de “riqueza” que a maioria dos homens tinha, principalmente naqueles tempos de dificuldade. A lâmina de puro aço, que devido à magia antiga jamais perdia o corte, brilhava mesmo sob o céu nublado… mas, se não fosse por sua propriedade mística, nada mais seria senão aço. A guarda era simples, de metal singelo e sem qualquer tipo de adorno ou figura esculpida, compondo apenas base firme para ser brandida; o cabo também austero terminando num pequeno rubi de escuro tom vermelho – a única pedra preciosa presente na arma, remetendo ao imponente dragão dos Pendragon: linhagem de Arthur, herdada de seu pai Uther.

Bedivere, entretanto, conhecia bem ao menos um dos segredos daquele sabre, e já há algum tempo. Muitas vezes, quando acompanhara Arthur em suas batalhas, vira-o brandir Excalibur sob a luz do sol ou do luar; e, banhada pelos raios celestes, a lâmina exibia aos olhos atentos inscrições gravadas no aço, certamente por mágica, em antigas runas celtas – o cavaleiro tendo sido informado pelo próprio Mordred, antes de sua traição, sobre o que significavam…

“Leve-me”.

O fato de a espada em si, além de Arthur, dar a ordem, forçou Bedivere a pegá-la, e os símbolos na lâmina brilharam justamente nesse momento, enquanto a erguia do solo com extremo cuidado. O peso era o de uma espada normal, mas sentia como se fosse tão custoso erguê-la quanto tirar do chão mil lâminas, devido à incrível responsabilidade – e poder – que aquela arma trazia.

O guerreiro voltou em seguida a contemplar seu rei… E ouviu, atentamente, as instruções que lhe foram por ele dadas.

 

Por mais incrível que parecesse, não foi difícil encontrar um cavalo vivo perto de onde Arthur se encontrava – o universo parecendo conspirar para que o último desejo do rei fosse atendido, e fazendo com que Bedivere acreditasse cada vez mais na forte magia que diziam predominar naquelas terras. Ainda vivo, porém não por muito tempo, o rei recusara o pedido do comandado para que o acompanhasse na jornada até o lago – e o guerreiro decidiu respeitar a escolha de seu senhor por morrer em silêncio e em paz. Tomando a montaria, pôs-se a cavalgar na direção indicada por Arthur, levando Excalibur embrulhada num pedaço de tecido vermelho que um dia compusera parte de uma bandeira com o emblema do Usurpador.

Por horas Bedivere cavalgou, atravessando pradarias, montes, florestas e riachos – todas as paisagens da Bretanha parecendo se alternar pelo caminho do cavaleiro, como um simbolismo da bela terra pela qual Arthur dera a vida. Por fim, no meio da tarde ainda nublada, chegou ao lago que o rei indicara, as águas cristalinas ondulando cálidas ao serem roçadas por uma brisa leve e reconfortante, bem diferente da atmosfera de morte que predominava em Camlann. Ciente de seu dever, Bedivere retirou a espada mágica do tecido que a envolvia, preparando-se para atirá-la, pelo cabo, dentro das águas…

Quando a lâmina brilhou mesmo sem luz, fenômeno que o guerreiro já concluía ser fruto de pura magia, mostrando o mesmo conjunto de runas que conhecia na superfície da espada… mas numa organização diferente, revelando o que até então falhara em perceber: havia duas mensagens distintas, uma de cada lado da lâmina. E aquela nova, em especial, dava seguimento às instruções do Rei Arthur, como um memorando ao inseguro cavaleiro:

“Deixe-me”.

Era o que deveria fazer, atirá-la ao lago, para Nimueh. Mas…

Não poderia se desfazer assim daquele artefato tão perfeito. Durante as décadas em que a possuíra, Arthur unificara a Bretanha, repelira os brutais invasores saxões, protegera os fracos, fizera justiça contra os tiranos, guiara seus cavaleiros na busca pelo Graal… Seria mesmo destino aceitável que aquela espada agora repousasse, para sempre, nas profundezas daquele lago, destinada aos caprichos de uma incerta divindade? Bedivere já se perguntava o que seria da Bretanha, de Camelot, sem seu rei. Se aquela arma, verdadeiro prodígio, fosse perdida, então não haveria mais esperanças para o povo que ali habitava.

Atormentado, virou a lâmina do sabre em suas mãos, deparando-se com a mensagem oposta…

“Leve-me”.

Decidiu-se. Não poderia cometer aquele crime. Tinha de levar a espada de volta a Arthur. Dando meia-volta com o cavalo, iniciou o caminho de regresso a Camlann, sentindo como se um peso enorme – bem maior que o da espada – houvesse sido retirado de suas costas.

 

Bedivere sentiu grande desconforto ao voltar a se deparar com o cenário do campo de batalha, porém procurou ignorar tudo e rumar diretamente ao pobre Arthur. O rei continuava deitado no solo, inspirando seus últimos ares, e lançou a ele novamente seus gélidos olhos azuis assim que se aproximou. As sobrancelhas se franziram e a boca se torceu, porém, tão logo o soberano viu que o embrulho com Excalibur ainda estava preso às costas do cavaleiro.

– Por que não respeitou minha vontade, Sir Bedivere? – indagou o rei, com toda raiva que sua condição permitia exprimir. – Deve devolver Excalibur ao lago. Este é meu último pedido!

– Mas meu senhor… – tentou argumentar o soldado. – Esta espada… ela é muito poderosa para…

– Por isso mesmo deve ser retornada ao local de onde veio – cortou Arthur. – Excalibur não pode cair em mãos erradas, ficar sob o poder de alguém que traga sofrimento à Bretanha. Ela estará segura com Nimueh, até que surja um guerreiro digno de recebê-la e liderar Camelot em meu lugar. Vá. Cumpra meu pedido, ou arrisque-se a permitir que meu fantasma o persiga pela eternidade!

Um pouco trêmulo, principalmente diante da ameaça, Bedivere concordou com a cabeça, regressando de imediato ao cavalo. Lançando um último olhar a Arthur e à desolação do campo de batalha, pôs-se a galopar mais uma vez em direção ao lago místico onde Excalibur deveria repousar.

 

Por mais horas Bedivere cavalgou, a tarde já findando, quando atingiu o lago novamente. Dessa vez desceu da montaria, seguindo com a espada às costas até a beira da água. Fitou mais uma vez as tranquilas ondulações em sua superfície, para então levar uma mão ao embrulho e puxar Excalibur novamente. A arma tornou a reluzir diante de si, e o lado da lâmina voltado para seus olhos manifestou o que queria:

“Deixe-me”.

Contraiu os lábios e, fazendo-se de surdo para a voz interior que insistia para que fizesse o contrário, ergueu a arma pelo cabo… em seguida, com o máximo de força que conseguiu, arremessando-a para dentro do lago.

A espada rodopiou no ar, sua lâmina brilhando a cada giro como uma estrela cadente. Por fim, quando estava a um metro de afundar na água… foi apanhada pelo cabo, num pouso perfeito, por um braço feminino que emergiu repentinamente do lago. Revelando-se até o cotovelo, era revestido pela manga do que parecia ser um vestido semitransparente, o pulso adornado com um bracelete que aparentava ser feito de ouro puro. Segurando firme Excalibur, os dedos mantendo-a erguida reta como se o próprio Arthur a empunhasse para inspirar seus homens antes da batalha, a mão então tornou a mergulhar, levando-a.

– Nimueh…

Bedivere ficou alguns instantes, imóvel e em silêncio, contemplando o lago vazio… ao mesmo tempo ponderando tanto sobre o destino da espada quanto sobre aqueles mistérios mágicos que falhava em compreender. Tomando as rédeas, já virava o cavalo para regressar a Camlann… quando o inconfundível som de algo saindo das águas fez-se ouvir atrás de si.

Retornou a atenção ao lago. Dele viu sair, subindo aos poucos pela margem e assim se revelando de cima para baixo, uma figura humana. Ou melhor, mais que humana. A lindíssima jovem de olhos verdes e longos cabelos castanhos – ensopados pela água e pingando agora que a deixava – era claramente a mesma pessoa responsável por apanhar Excalibur, o que poderia ser concluído por seu traje: um longo vestido branco de corte único enfeitado com rendas e inscrições de runas em algumas partes, as mangas sendo semitransparentes e havendo detalhes dourados por toda sua extensão. Caminhando descalça até Bedivere, enquanto o mirava nos olhos e assim o deixava praticamente hipnotizado, a Dama do Lago, porém, não tinha a espada do Rei Arthur em mãos. Trazia ao invés disso, no colo, um embrulho branco como seu vestido, que se mexia. O cavaleiro, abismado, notou sem demora se tratar de um bebê, agitando os bracinhos – embora calmo – junto ao peito da entidade.

– Sir Bedivere… – ela o chamou, com uma voz que se assemelhava a mil dos mais sublimes pássaros cantando. – Aquele que retornou Excalibur deve agora cuidar do legado de Arthur. Tome-o. Como conhece o segredo da espada e seu local de repouso, deverá cuidar para que no futuro a linhagem Pendragon volte a brandi-la.

Estendeu em seguida a criança ao guerreiro, o qual, extremamente confuso, julgou não compreender palavra alguma dita por Nimueh, talvez por medo.

– O que quer dizer? – replicou inseguro.

– Meu filho me trouxe esta criança, deixando-a sob meus cuidados como provável maneira de se redimir da traição que perpetrou contra seu senhor. O pobre Rei Arthur deixará este mundo sem saber que gerou um herdeiro legítimo, de seu próprio sangue, além do maligno Mordred. Trata-se desta criança pura e inocente.

Um traidor desejando se redimir? Referindo-se a Camelot, Bedivere só conhecia dois traidores. O Usurpador, que agora jazia morto em Camlann e que todos sabiam ser filho de Morgana… e Sir Lancelot du Lac, antes o melhor dentre os cavaleiros da Távola Redonda, até ter se apaixonado pela Rainha Guinevere, esposa de Arthur, que junto a ele mergulhou o reino em profunda desgraça quando o adultério foi descoberto, levando à cadeia de eventos que resultara na tomada do trono por Mordred e o confronto final com o legítimo rei. Após ter matado alguns de seus próprios companheiros de Távola enviados para prendê-lo, Lancelot fugira com Guinevere e o casal estava já há meses desaparecido, deixando Camelot e seu rei à própria sorte. Era uma surpresa encontrar daquela maneira a mãe do dito cavaleiro, ainda mais sendo ela uma ninfa das águas.

– Mãe de Lancelot, Sir Lancelot du Lac? – quis confirmar Bedivere, ainda achando a história no mínimo perturbadora.

– Sim, sou mãe de Lancelot, mas de criação. Criei-o desde muito jovem, quando seus verdadeiros pais foram mortos a mando do terrível rei Claudas, do outro lado do canal.

De qualquer modo, ouvir falar mais uma vez sobre o outro traidor da corte de Arthur, ainda mais no momento de sua morte, encheu Bedivere de desgosto:

– Não posso aceitar nada que venha de Lancelot. Tudo que ele pode oferecer é mentira e traição.

– Nem mesmo o herdeiro de seu amado rei? – a voz da Dama do Lago se intensificou ligeiramente, embora seu tom continuasse harmonioso. – Escute, nobre cavaleiro. Lancelot errou, sim, em dar vazão à sua paixão proibida pela Rainha Guinevere. Mas está arrependido, isso posso lhe garantir, como a pessoa que melhor o conhece. Ele me procurou, disposto a se tornar monge pelo resto da vida numa forma de redimir-se de seus pecados, mas antes de se fechar no claustro quis me trazer este menino. Arthur também errou ao expulsar Guinevere de Camelot, cego pelo ódio que sentia por sua traição, sem dar chances de ela lhe contar estar grávida de um filho seu. O bebê nasceu no exílio, e Lancelot não poderia simplesmente assumi-lo. É preciso que a criança seja criada por alguém capaz de garantir que ela assuma o trono do pai tão logo atinja idade, e que a traga aqui para reaver a espada que lhe é de direito. Como Arthur o encarregou de Excalibur, Sir Bedivere, então eu o também encarrego do menino. Vá, leve-o e proteja-o. Seria a vontade de seu rei.

O cavaleiro hesitou por um ou dois instantes, mas acabou tomando o bebê em seus braços. Admirou-o em toda sua graça pueril, o rostinho abrindo um sorriso para si enquanto o guerreiro percebia que o pequeno herdara os penetrantes olhos azuis do pai.

– A criança ao menos tem nome? – perguntou a Nimueh.

– Tem sim, dado pela própria mãe, quando a teve pela primeira vez em seus braços: Amr.

“Amr”. Um nome forte, adequado ao herdeiro daquele que Bedivere considerava o maior dentre os reis que um dia já reinaram entre os homens. Contemplou o bebê por mais algum tempo, chegando a brincar com uma de suas mãozinhas, e quando ergueu a cabeça para perguntar à Dama do Lago até onde exatamente deveria ir com a criança… a divindade das águas já havia desaparecido, deixando no ar apenas um leve aroma de flores misturado a pequenos pontos brilhantes, que num piscar de olhos se dissiparam.

Em silêncio, continuando a fitar o menino e se deixando envolver pela brisa do lago, Bedivere refletiu sobre as palavras de Nimueh. “O pobre Rei Arthur deixará este mundo sem saber que gerou um herdeiro legítimo”… Teria afirmado a mulher que o soberano de Camelot já havia morrido? Uma terrível dúvida tomou o soldado, unida à angústia de pensar que o rei poderia mesmo partir sem tomar conhecimento do filho que gerara. Apressado, o cavaleiro, com a criança nos braços, tornou a subir no cavalo, decidido a galopar mais uma vez de volta a Camlann. A probabilidade de obter êxito era baixa, mas… tinha de tentar mostrar a seu senhor o herdeiro que desconhecia, nem se fosse a última coisa que ele visse em vida.

 

Quando atingiu o limite da planície, a tarde terminava – as nuvens só então tendo se dispersado enquanto, em meio a um céu vermelho, davam espaço para que o sol, como uma esfera do mais puro ouro, se pusesse atrás do horizonte.

Bedivere avançou pelos corpos dos dois exércitos, agradecendo aos deuses pelo bebê ainda ser muito pequeno para entender o triste acontecimento que se desenrolara ali. Procurou durante algum tempo, julgando que o cansaço afetava seus sentidos… porém sem demora concluiu que o corpo do Rei Arthur, por algum mistério, não mais se encontrava ali. Durante um momento o coração do guerreiro se encheu de esperança, acreditando que o soberano, indomável como era, teria se recuperado do ferimento e se erguido sozinho do solo, retornando a Camelot junto com outros cavaleiros sobreviventes. A hipótese, no entanto, era forçada demais por sua mente atordoada com a miséria do rei, e provavelmente falsa.

Mas quando, junto do bebê, cavalgou para o braço de mar que se estendia terra adentro perto da planície, Bedivere teve uma visão mais maravilhosa do que poderia jamais prever… e arriscaria até dizer que, o que vislumbrou, conseguiu deixar seu coração mais acalentado e tranquilo do que ver Arthur vivo.

Distanciando-se sobre as ondas e iluminado pelos últimos raios de sol do dia, que lhe davam um aspecto vermelho-dourado, um pequeno barco de madeira portando uma imponente flâmula com o símbolo de Camelot carregava o corpo do Rei Arthur para longe. Apesar da crescente distância, Bedivere pôde perceber que o corpo do soberano fora limpo e colocado numa armadura intacta, suas mãos unidas pousadas sobre o peito e a viseira do elmo fechada – dando uma aura mística ao bravo comandante que unificara toda a Bretanha. Junto dele, de pé, também a bordo da embarcação, havia três mulheres em trajes alvos resplandecentes, revoando ao vento, em vigília em torno do rei. Uma loira, uma morena e uma ruiva, e Bedivere jurou conseguir identificar, por um breve instante, a própria Nimueh como uma delas.

Lentamente o bote desapareceu na linha do horizonte, como de encontro ao astro-rei em seu crepúsculo, recolhendo-se do mundo junto com ele. Estupefato pelo glorioso momento, Bedivere demorou a se recordar das lendas celtas e das inúmeras profecias em torno da figura de Arthur. Se estivessem corretas, o soberano estava sendo levado a Avalon, a Ilha dos Abençoados, para um dia retornar, majestoso, e retomar a liderança de seu amado reino.

– Até lá… – suspirou o cavaleiro, tornando a olhar para a criança em seu colo. – Camelot será sua, meu pequeno Amr. Sua e daqueles que vierem depois de você, enquanto seu heroico pai não retornar. És aquele com direito a brandir a divina Excalibur… e, enquanto não puder sustentá-la com o próprio punho, eu o protegerei com minha própria vida.

 

 

 

Capítulo 1

 

O futuro e eterno rei do futebol de botão

 

– Vamos lá… Letra “A”. Valendo!

Ele voltou sua atenção para a folha de caderno, assim como os outros alunos da 7ª “B”. O papel estava dividido em colunas verticais, seguindo o modelo em que o professor substituto dividira a lousa usando giz. No alto de cada coluna, fora escrito o nome da categoria que representava na brincadeira: “CEP”, “Rei/imperador/presidente”, “Acontecimento histórico”, “Monumento histórico”, “Arma ou veículo de combate”, “O Hitler é…” e “Total”.

Era a terceira vez que o professor de História do colégio faltava naquele mês, e talvez a décima no ano – justo porque História era a matéria que Aurélio mais gostava. Como sempre, o substituto que mandavam não sabia patavina da matéria, e Júlio, o representante de sala, propusera mais uma vez o jogo de “Stop Histórico”, ensinando ao confuso professor como brincar daquilo com os alunos. Aurélio até gostava do passatempo, mas jogá-lo pela quarta vez em aula enquanto o professor poderia estar ensinando sobre a época em que o Brasil fora colônia de Portugal – a parte da matéria em que deveriam estar, a julgar pelo livro que a escola dava – já deixava o garoto nervoso. Além do mais, estava certo de que não conseguiria preencher todas as colunas com palavras e nomes iniciados com “A”. Dar “stop” era muito mais fácil quando caíam letras consoantes.

Em “CEP”, sigla que significava “Cidade, Estado ou País”, Aurélio colocou “Antártida”, certo de que a maioria da sala escreveria “Alemanha” ou “Argentina” e tiraria menos pontos por isso na hora da contagem de fim de rodada. Precisava considerar que “Antártida” era um continente, não um país; mas na rodada anterior a Mariana, que sentava no fundo da classe, colocara “Oceania” como CEP da letra “O”, e o professor substituto considerara correto. Ser bom de Geografia e gostar de folhear Atlas se mostrava útil em momentos como aquele. Era possível lembrar locais do mundo que a maioria nem sequer sabia que existia – havendo como lado ruim, no entanto, desconfiarem que se estava inventando, e para piorar muitas vezes nem o próprio professor tinha certeza se já ouvira falar do tal lugar.

Em “Acontecimento histórico”, colocou “Aclamação de Amador Bueno”, um fato que vira de relance no livro de História antes de a aula começar, quando São Paulo proclamara seu próprio rei, ou coisa parecida. Avançou para “Monumento histórico” e escreveu “Avenida Rio Branco” tão rápido que quase quebrou a ponta do lápis – o que o teria automaticamente eliminado da rodada pelo tempo que gastaria com o apontador. A avenida não era um ponto histórico em si, mas estava cheia de marcos e memoriais, como se lembrava da última vez que estivera nela. Caso o substituto implicasse, responderia aquilo. Não precisava se preocupar em contrariá-lo e deixá-lo talvez bravo com isso: era provável que depois daquele dia nunca mais voltasse a ver o sujeito.

Em “Arma ou veículo de combate”, Aurélio registrou “Avião a jato”, para diferenciar-se do resto da turma, que muito provavelmente só colocaria “Avião”, e por isso empataria. Logo em seguida partiu para “O Hitler é…”, e colocou “Amigo”. Por mais contraditório que parecesse, Hitler tinha de ter sido amigo de alguém, nem que fosse do Mussolini, conforme lera nos livros. Na verdade, aquela categoria estava gerando grande número de palavrões – mas o professor substituto não parecia se importar muito a respeito, a não ser por uma leve recomendação para que os alunos suavizassem o vocabulário.

Restava apenas o nome de um rei, imperador ou presidente. Aurélio viu-se pego num branco. Que nome colocaria ali começando com “A”? Desesperado para acabar primeiro, escreveu simplesmente “Amador Bueno”, imaginando se o professor implicaria com o fato de ele, de certa forma, ter se repetido. Mas o tal Amador Bueno não fora aclamado rei de São Paulo, nem que por pouco tempo? Então valia. Respirou fundo e, soltando o lápis sobre a carteira, exclamou, erguendo um braço:

– Stop!

Olhares zangados, resmungos e reclamações se proliferaram pela sala, como era de costume sempre que alguém concluía primeiro a rodada. Alguém murmurou “só faltou monumento histórico” atrás de Aurélio, enquanto outra voz, de menina, soltou um “tinha que ser esse CDF mesmo!”. CDF ou não, ele estava ali para ganhar, e desejava mostrar seus conhecimentos sobre a matéria que mais gostava, ainda que não fossem lá tão bons assim…

O professor substituto, um rapaz magro, de óculos e camiseta listrada do qual Aurélio já esquecera o nome, iniciou a correção, andando pela sala. Eram duas aulas de História seguidas, ou não teria dado tempo nem de jogar duas rodadas inteiras – já que conferir a resposta para cada categoria aluno por aluno era no mínimo demorado. Além do mais, Aurélio desconfiava que vários deles estavam trapaceando. Não culpava o substituto por isso, porém: era difícil ficar de olho na ficha de Stop de todos com uma classe de trinta e cinco alunos jogando.

– “América” – disse Paloma, a primeira da fileira à esquerda da sala, junto às janelas. Pelo visto, não fora apenas Aurélio o único a incluir o nome de um continente na coluna “CEP”.

– “A minha casa” – seguiu Ricardo, o “engraçadinho” da classe, sentado logo atrás. Muitos desataram a rir, enquanto o professor balançava negativamente a cabeça, indicando que a piada não valeria pontos.

Assim que os gracejos terminaram, a garota sentada atrás de Ricardo informou sua resposta à categoria:

– “Amapá” – revelou num sorriso.

Certamente ninguém mais na sala incluíra o nome do estado brasileiro em sua folha, “Amazonas” e “Acre” tendo sido respostas mais comuns – o que foi logo revelado pelos alunos batendo a mão na cabeça ou praguejando por não terem pensado naquilo. Aurélio não esperava algo diferente daquela aluna, já tendo há um bom tempo se acostumado ao seu jeito. Amiga sua, não tirava notas tão boas, mas era muito perspicaz, esperta – dotada de algum tipo de sabedoria que a fazia se sair bem de quase todas as situações. Tinha os cabelos pretos lisos presos num rabo-de-cavalo com elástico verde, abundantes sardas junto ao nariz e uma expressão na face que sempre levava a crer saber mais sobre o que ocorria ao seu redor do que os outros – impressão que na maioria das vezes se confirmava. Seu nome era Guilhermina – que herdara da falecida avó. Mas como, por motivos óbvios, o odiava, aceitava que a chamassem apenas de “Gui”. E ai de quem ousasse provocá-la quanto a isso…

– “Aracaju” – continuou outro aluno atrás de Gui, numa boa resposta.

E, num som que lembrava um longo e estridente grito de “aaaa”, como se também participasse do jogo, o sinal da escola bateu – fazendo com que os alunos imediatamente se levantassem, muitos com o material já guardado, e deixassem a sala sem se importar com o resultado final da partida. Apesar de querer saber se ganhara ou não, Aurélio deu graças aos céus por aquilo ter terminado. Não aguentaria mais uma rodada de “O Hitler é…”.

Como sempre, Gui, mais adiantada, o aguardou junto à porta da classe. Juntos prosseguiram através do corredor, diminuindo o passo para não serem engolidos pela muvuca dos demais estudantes deixando suas salas ao mesmo tempo.

– E então, que vai fazer hoje? – a menina perguntou. – Não tem lição de casa!

Realmente. Nas duas primeiras aulas do dia eles haviam tido prova de Matemática – na qual Aurélio acreditava ter ido terrivelmente mal, e na terceira e quarta, aula de Educação Física. As duas últimas aulas haviam consistido no jogo de Stop Histórico devido à falta do professor, então aquela tarde estava mesmo livre de deveres. Gui tivera total sucesso em notar isso antes que ele.

– Ah, não sei… – o garoto só então parava para pensar naquilo. – Acho que vou ficar em casa jogando “Age of Civilizations”.

– Não acredito! – Gui fez uma careta que destacou suas sardas, como sempre acontecia quando ela torcia o rosto. Por um momento Aurélio achou até que ela fosse lhe bater. – Seu viciado!

Bem, o menino tinha de admitir que estava mesmo viciado naquele game para computador. Desde que o comprara numa banca perto de casa, há alguns meses, jogava sempre que tinha tempo livre. Gui detestava jogos, mas Aurélio acreditava que ela gostaria daquele se desse uma chance. Tratava-se de escolher um povo antigo para comandá-lo até os dias de hoje, interagindo com povos vizinhos e avançando a civilização. Achava até que o passatempo vinha servindo para aumentar ainda mais seu interesse por História.

– Ah, mas o que você queria fazer? – o garoto resmungou, buscando uma desculpa. – O sol está muito quente para ficar na rua…

– Mas existe sombra! – a menina rebateu, com ar de superioridade. – Eu queria ir àquele parque lá perto de casa. Reformaram. Tem muitas árvores por lá, não tem como reclamar do sol. Ia chamar o Bruno e o Gabriel também.

Os dois amigos provavelmente iriam ao parque com Gui, embora também houvessem instalado Age of Civilizations em suas casas e até jogassem on-line com Aurélio algumas vezes. Se ele fosse, com certeza o game seria “o” assunto da roda, o que deixaria a garota irritada. Sorriu com a ideia.

Nisso, chegaram à escada que levava ao térreo do colégio, Aurélio como de costume segurando o corrimão de ferro como se estivesse na beirada de uma montanha. Não sabia o que as mulheres da faxina usavam para limpar os degraus de azulejo, mas os deixava terrivelmente lisos. Já quase caíra ali várias vezes ao tentar descer sem apoio, por isso não mais repetindo o erro. Gui, por sua vez, conseguia percorrer a escada sem segurar em nada, com a maior facilidade – o que sempre deixava o amigo impressionado. Ou ela tinha cola nos pés, ou uma agilidade mesmo fora do comum.

– Seu medroso! – ela zombou, já quase no último degrau enquanto Aurélio ainda passava da metade, mão firme no corrimão. – Se fosse menos sedentário conseguiria descer sem cair!

Irritado com a provocação, ele até tentou dar uma acelerada no final do trajeto, mas não quis arriscar demais. Chegou ao solo ainda com uma das mãos no apoio, imaginando que algum dia a agitada Gui ainda o jogaria lá de cima. Ela fez uma nova careta e ambos, misturando-se à multidão de alunos da escola, dirigiram-se à porta de saída.

 

A escola em que estudavam estava situada na área central do bairro de Curicica, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Aurélio aprendera logo no pré que o nome vinha do indígena “Ya-Cury-Ycica”, a “Árvore que Baba”, e sempre achara a denominação engraçada – embora nunca houvesse se deparado com nenhuma árvore babona por ali, e podia dizer que conhecia o bairro bem, tendo crescido nele.

Sem árvores que babam, mas com certeza há muitos “babões” andando por aqui… – pensou, ao olhar de relance para Ricardo, o mesmo aluno chato que brincara no Stop.

Enquanto vários alunos se dirigiam aos ônibus escolares que os levariam de volta para casa, parados em frente à escola, Aurélio e Gui continuaram a pé, descendo a rua. O primeiro não morava a mais de seis quarteirões do colégio, enquanto a amiga residia um pouco mais longe, mas nada que a impedisse de voltar também andando: dez. O dia estava mesmo quente, com o sol do meio-dia fritando o asfalto, os telhados das casas e os corajosos moradores que ousavam enfrentá-lo saindo das sombras das árvores e fachadas. Aurélio, uma vez, quisera realizar a experiência de tentar fritar um ovo no pavimento de sua rua, numa tarde infernal, mas o avô não deixara. Tinha de se lembrar de fazer mesmo aquilo, no futuro.

Atravessando um par de esquinas e ganhando a calçada do quarteirão seguinte, Aurélio observou a paisagem que se desenhava à frente. O Morro da Pedra Padre, elevação que se destacava em meio ao bairro, parecia sempre imponente e invencível mesmo com todo aquele calor, e por um momento o garoto quis estar no meio da cobertura de árvores do monte para ao menos se sentir mais ameno. O limiar de sobrados e alguns prédios dominava o cenário, com o tráfego da Estrada dos Bandeirantes sendo levemente perceptível mais ao longe; a Cidade de Deus e o centro de Jacarepaguá além dela. Apesar de possuir seus problemas, Aurélio gostava daquele lugar. Tinha a impressão de estar localizado praticamente no limite da área urbana do Rio de Janeiro, situado entre a metrópole agitada de um lado e um mar de morros verdes e altos do outro, iniciando-se a partir da área do Hospital Geral de Curicica e subindo além até os subúrbios mais afastados.

Os dois jovens prosseguiram em silêncio por cerca de dois quarteirões, Aurélio inclusive estranhando o fato, já que o normal era Gui falar feito uma matraca da escola até a esquina em que se despediam. Notou também que a amiga tinha a cara mais amarrada do que de costume, assustando-se por ela não converter isso em zombarias ou brincadeiras contra si, como sempre fazia. Não mais conseguindo conter sua curiosidade – e até preocupação – em relação à menina, resolveu perguntar:

– Tem alguma coisa errada?

Gui fitou-o fixamente nos olhos, abrindo a boca para responder e fazendo as sardas quase brilharem enquanto fritavam ao sol… quando, subitamente, a atenção de Aurélio foi atraída para outra coisa:

– Olha lá, parece ter coisas novas na loja do senhor Campbell!

O garoto acelerou para a calçada do outro lado da rua, ignorando a longa e sonora bufada dada por Gui – que se viu sem opção a não ser acompanhá-lo.

O estabelecimento ao qual Aurélio se referia, funcionando no andar de baixo de um modesto sobrado entre um boteco e uma pequena venda, era a loja de antiguidades do senhor Maxwell Campbell. Nome um tanto estranho; porém o garoto sabia há muito ter explicação na origem inglesa do homem. Viera para o Brasil, segundo lhe contara o avô, fugindo da Segunda Guerra Mundial na Europa, em 1944 ou 1945 – não se lembrava bem. Tivera de início uma fazenda ali em Curicica, que depois se converteu numa quitanda, até chegar à loja de antiguidades – negócio do qual, segundo o próprio senhor Campbell, ele realmente gostava.

Como de costume – e Aurélio sempre passava ali em frente indo e voltando do colégio – o comerciante dispunha todas as suas peças à venda na calçada diante da loja, não restando praticamente nada em seu interior. O garoto não sabia por que o idoso tanto insistia em deixar as mercadorias expostas ali, onde poderiam ser roubadas ou estragar – mas talvez fosse por ter vergonha da simplicidade de seu sobrado, ou apenas para atrair mais compradores. Ele mesmo não ficava dentro do estabelecimento, estando sentado na cadeira de balanço que era sua marca registrada, em meio às estantes e mesas com os produtos, movimentando-se para frente e para trás como se não se importasse nem um pouco com o sol quente. Mesmo administrado daquela maneira, era sabido que o negócio prosperava – pessoas do Rio de Janeiro inteiro, e também de fora do estado, vindo ali adquirir alguns de seus artefatos raros.

Usando um singelo colete cinza sobre uma camisa de botões branca, gravata-borboleta, calças de cordão e sandálias nos pés, o velho tinha o semblante já manchado pela idade adornado com um bigode branco como giz, uma boina marrom que lhe ocultava boa parte dos cabelos igualmente descoloridos, e os olhos cobertos por um par de óculos de lentes redondas. Aurélio achava aquele acessório extremamente legal, e queria um dia ter um igual – embora imaginasse ser muito caro.

– Senhor Campbell! – falou numa pronúncia correta após anos de prática, aproximando-se da cadeira de balanço. – O que o senhor comprou de novo?

O idoso, que até então cochilava, sorriu ao notar a presença do menino. Ergueu-se da cadeira apoiado na bengala de madeira que trazia sempre numa das mãos – enquanto Gui, um tanto esbaforida por atravessar a rua correndo, se unia ao amigo.

– Ora, ora, pequeno Aurélio… – ele respondeu com voz serena e forte sotaque inglês. – Venha cá, que lhe mostrarei.

O comerciante levou-os até uma das estantes colocadas na calçada, apontando para sua seção mais superior:

– Tudo isto aqui é novo.

Havia no local indicado uma série de objetos que pareciam ter no mínimo duzentos anos de idade – e Aurélio até se perguntara algumas vezes se o próprio vendedor não seria tão velho quanto. Viu, primeiro, um trambolho de metal com uma alça em cima que imaginou ser um molde de fazer tijolos ou algo similar, até que se lembrou que o avô já lhe explicara uma vez ser aquilo um ferro de passar roupa a brasa, quando ainda não havia eletricidade nas casas. Logo ao lado, um telefone do início do séc. XX, que até então Aurélio só encontrara em filmes, convidava quem o via a realizar uma ligação direto para o passado. Em seguida, o item que mais chamou atenção do jovem: uma pistola antiguíssima, ainda usando balaços como munição, da época dos piratas e corsários – tendo lindos detalhes em dourado e um brasão gravado no cabo que não conseguiu identificar. Por último, encerrando a fileira, uma boneca de corda, de cara rosada e cabelos loiros entufados, cuja expressão chegou até a assustar um pouco o garoto.

– Quer aquela boneca de presente, molenga? – riu Gui, notando a péssima impressão que o amigo tivera. – Se quiser eu compro pra você!

Aurélio ignorou o comentário, descendo os olhos às demais antiguidades – que já conhecia, mas que infelizmente nunca possuía dinheiro para adquirir… desde quando bem novo, quando visitara a loja, sempre situada ali, pela primeira vez. Se a menina se propusesse a pagar para que ele levasse outra daquelas peças para casa – de preferência a pistola de pirata – ele ficaria bastante agradecido.

Os olhos do jovem se perderam entre carros antigos em miniatura, objetos de higiene de cem anos antes, uma máquina de telégrafo, quadros, estátuas… até mesmo um grande relógio de gabinete, incrustrado numa conservada estrutura de madeira, encontrava-se na calçada em pleno funcionamento, seu pêndulo emitindo constantes “tic-tacs” por trás do vidro que ocultava também suas engrenagens.

– Vocês não estão atrasados para o almoço e as tarefas de casa? – lembrou o senhor Campbell, sempre zeloso com os estudos dos mais novos.

– Hoje não tem tarefa! – Aurélio fez questão de mencionar, já se imaginando jogando Age of Civilizations.

– Pode até não ter, mas não quero que o ronco de fome da sua barriga espante meus clientes se acharem que é um ogro! – brincou o velho numa breve risada.

O garoto achou a comparação do vendedor bem exagerada, mas precisava reconhecer estar com bastante fome – não tendo comido nada desde o pão com mozarela do intervalo da escola e já sentindo o estômago se contrair devido ao vazio. Além do mais, não tinha dinheiro para comprar nada dali, e ficar olhando só o encheria mais ainda de vontade.

– A gente já vai indo! – mas foi Gui, na verdade, quem se despediu, quase puxando Aurélio pela calçada. – Boa tarde para o senhor.

– Boa tarde, meninos – Campbell replicou amavelmente, apanhando um esfregão para limpar um vaso disposto numa das estantes.

Aurélio aproveitou a deixa para prosseguir pela rua junto com a amiga. Conforme se distanciaram da pequena loja, o menino resolveu indagar, um tanto inconformado:

– Por que estava tão apressada em me tirar de lá?

– Você ouviu o velho, um ogro mora aí dentro! – riu Gui, apontando para a barriga do colega. – Além disso, quanto mais tempo perdesse com aquelas quinquilharias, mais se atrasaria para ir ao parque hoje…

– Mas eu nem confirmei se irei ou não! – Aurélio irritou-se, como sempre acontecia quando a garota acabava decidindo o que ele ia ou não fazer.

Já haviam chegado à esquina em que se despediam. Naquele caso, Gui deu um leve soco num dos ombros do amigo – mas por certo não mediu sua força, pois doera. Depois seguiu seu caminho, fazendo-lhe outra careta enquanto acenava. Aurélio, por sua vez, dobrou a rua, massageando o braço ao mesmo tempo em que ponderava sobre qual escolha faria: o game de estratégia ou o parque com os amigos.

Enquanto pensava, se deu conta de não fazer a mínima ideia da razão de Gui andar mudando de humor e explodindo tão facilmente aqueles últimos tempos…

Talvez a menina fosse simplesmente doida, era isso.

 

A casa em que Aurélio vivia com o avô era bem modesta – a ponto do garoto não entender como o senhor Campbell poderia ter vergonha, se realmente tivesse, de seu estabelecimento. Situava-se entre um sobrado e um terreno baldio – a grama neste tão alta e há tanto tempo descuidada que era lugar igualmente fértil para o surgimento de cobras, lagartos e outros animais peçonhentos; os quais o avô, com extrema frequência, tinha de expulsar da moradia com a vassoura ou um bom jato d’água. Por trás do simples portãozinho branco de metal, a tinta estando já toda descascada, o pequeno jardim onde o avô cultivava flores levava à porta de entrada da residência. Se os cômodos eram humildes, eram também ao menos espaçosos – e isso a Aurélio bastava. Algumas vezes até mesmo se pegara imaginando que a casa era seu castelo, sendo o avô o rei e ele o “senescal” – palavra difícil que ele descobrira se referir aos antigos funcionários que administravam os castelos para seus senhores na Idade Média.

Atravessando a sala de poucos móveis – praticamente apenas um sofá e a mesinha com a TV – o garoto ganhou a cozinha, onde o avô Genaro, como de costume, àquela hora terminava o almoço. O cheiro da comida invadia os demais espaços da casa, atiçando o estômago de Aurélio a ponto de ele, realmente, roncar como um ogro. O idoso, junto ao velho fogão de onde subia fumaça de panelas e vasilhas, acabou se voltando para trás – o neto sem certeza se fora atraído por seus passos ou o monumental som de sua barriga. De qualquer forma, sorriu ao vê-lo, informando, ao passar uma mão pelos poucos cabelos brancos que lhe restavam na cabeça e limpando a outra, suja de molho de tomate, em seu avental com o símbolo da escola de samba do bairro:

– Vá guardar seu material e se trocar. O almoço sai já, já!

Aurélio obedeceu, rumando ao quarto. Adentrando-o, quase jogou a mochila sobre a cama, tirando os tênis e as meias para folgar os pés. No lugar, calçou um par de chinelos. Tirou o uniforme da escola e sua bermuda, trocando-os por roupas limpas no guarda-roupa com espelho junto a uma parede. Além do grande móvel e da cama, o dormitório era preenchido com uma escrivaninha contendo o computador do garoto, seu maior tesouro; uma pequena cômoda onde mantinha guardados revistas e livros, tanto de escola quanto de outros assuntos; e um biombo situado atrás da porta, antes pertencente ao avô, onde pendurava seus bonés.

Terminando de se vestir, Aurélio retornou à cozinha… mas, ganhando o corredor, lançou de relance um olhar para o quintal da casa, a porta a ele levando situada justamente no final do caminho. Mesmo de longe, conseguiu ter um vislumbre da “Garrincha”, montada e pronta, disposta na areazinha onde também ficavam o tanque de lavar roupa e o varal.

Parou por um momento, a meio caminho da cozinha, concluindo que, naquela tarde, não se entreteria nem com Age of Civilizations, e nem com o passeio no parque…

“Garrincha” era como o avô apelidara a mesa para jogar futebol de botão que ele tinha em casa, comprada há anos. Do mesmo tamanho que a mesa da cozinha, era o orgulho de Genaro, reproduzindo com perfeição o aspecto de um campo de futebol verdadeiro, incluindo até as faixas do gramado. Possuía enorme ciúme daquela aquisição e, para tê-la exposto daquela maneira, Aurélio sabia que só poderia ser por um motivo: aquele era dia de campeonato, e havia se esquecido.

– Rápido, menino, pois os campeões precisam estar bem-alimentados! – salientou o avô, como se pudesse ler os pensamentos do jovem.

Uma tarde por mês, Genaro chamava seus amigos do bairro – alguns de longuíssima data, e também apreciadores daquele esporte – para participarem de uma disputa de futebol de botão em sua casa. Pelejando sobre Garrincha, os jogadores tinham direito a prêmios de primeiro, segundo e terceiro colocados: pequenos cacarecos e presentes similares a prendas de quermesse, obtidos das senhoras da vizinhança entre as quais os campeonatos mensais já haviam se tornado quase uma tradição, e que por isso colaboravam de bom grado. A disputa, porém, não ocorria propriamente pelos prêmios, e sim para definir o melhor jogador. A questão era que, já há alguns anos, o avô considerava a participação de Aurélio na competição sagrada. Sem Aurélio, não poderia haver campeonato, como sempre dizia.

E o neto certamente não ia querer estragar a diversão dos demais…

A verdade era que gostava bastante de futebol de botão. O passatempo também envolvia inteligência, por ser preciso organizar as peças dos jogadores em campo da melhor forma possível, elaborando estratégias e táticas mais complexas até que as de Age of Civilizations – e por certo o garoto se interessara tanto pelo game justamente por já apreciar o esporte de mesa. Além disso, há vários meses era invicto nos campeonatos. Desde que pegara o jeito da coisa, viera só melhorando, até chegar ao ponto de se tornar imbatível no bairro. Quando ficava em primeiro lugar nas disputas, o avô costumava lhe dar algum dinheiro a mais para gastar – o que também não era de todo mal. Só faltava, para aquela tarde, escolher com qual time jogaria. O avô colecionava centenas, todos em caixinhas de madeira guardadas em seu quarto, de clubes de todos os estados brasileiros e do exterior, até seleções. Da última vez, Aurélio vencera jogando com um time de fora do Rio, o Cruzeiro, coisa que nunca fizera antes. Talvez agora escolhesse alguma equipe de São Paulo. Por mais que dissessem que na prática o adesivo com o brasão colado sobre os botões não influísse em nada, ele achava que a escolha do time envolvia sorte. Ao menos, assim, não precisava confiar apenas em sua habilidade com a palheta…

– Vem, Aurélio, já está esfriando!

O garoto nem percebera que começara a divagar no meio do corredor. Num pulo de susto, voltou correndo para a cozinha, onde Genaro já servia o almoço. Encheu um prato de comida e um copo de suco, disposto a eliminar toda fome para que os eventuais roncos de seu estômago não atrapalhassem sua concentração durante o campeonato daquela tarde.

O game de estratégia e o passeio com Gui teriam mesmo de esperar…

 

 

Capítulo 2

 

Aquela tarde medonha

 

Se havia algo que conseguia fazer Aurélio se concentrar ao máximo, era o futebol de botão.

Ironicamente, o garoto só conseguia se sentir à vontade disputando com os mais velhos, os amigos de sua idade não tendo qualquer aptidão para o esporte. Haviam crescido jogando videogame; a lógica era outra. Aurélio não desprezava os games, porém não olhava com desdém para o futebol de botão como sua geração fazia. Bruno e Gabriel, seus colegas mais chegados, haviam tentado jogar algumas vezes, talvez devido a serem contagiados pela paixão que ele tinha por aquilo… Porém se mostraram péssimos praticantes – por mais que Aurélio tentasse ensiná-los. Gui, por sua vez, sempre torcera o nariz para o jogo, e por certo reclamaria muito quando descobrisse que ele não fora ao parque para participar do campeonato. Se bem que, nos últimos tempos, o menino vinha se perguntando a respeito do que a amiga poderia realmente gostar, se esse algo existisse…

De qualquer modo, jogar botão exigia técnica. Alguém que não conhecia o esporte, apenas observando, poderia resumi-lo em mover as peças com a palheta para que o pequeno disco representando a bola passasse entre o goleiro e as traves do gol – mas era bem mais complexo. Tornava-se necessário aplicar a força certa na palheta para cada situação na mesa, e Aurélio passara bastante tempo treinando para se aperfeiçoar nisso. Assim, colocar muita pressão num botão na frente do gol ou mover de leve uma peça em meio de campo poderiam ser erros dando larga vantagem ao adversário. Este, no caso, era representado pelos discos pretos do time do Vasco da Gama, movido na mesa pelas hábeis mãos do Seu Luís, velho jogador de botão raramente vencido nos campeonatos.

Havia um círculo de pessoas em torno de Garrincha, e o quintal da casa do avô Genaro estava cheio como só ficava nos dias de disputa. Toda a vizinhança comparecera, e até mesmo alguns moradores do bairro que tinham vindo de quarteirões mais afastados. Os campeonatos se tornavam famosos, despertando principalmente a curiosidade daqueles que desejavam relembrar ou conhecer a prática esquecida do futebol de botão. Dona Lídia, a costureira, viera como sempre, trazendo desta vez também o marido – que jogara muito aquilo na infância e que já deixara seu pedido para tomar parte no campeonato do mês seguinte. Tomás, o senhor careca da farmácia, viera com um primo; e Laerte, da transportadora, chegara com dois filhos da idade de Aurélio – que, no entanto, não quiseram jogar, por desinteresse ou vergonha, limitando-se a assistir.

A chave do campeonato estava disputada aquele dia. Aurélio, que acabara optando pelos botões verdes do clube paulistano Palmeiras, já vencera por cinco a dois Odair, amigo do avô: um botonista apaixonado, mas sem muita habilidade de jogo. Agora encarava o vencedor da outra partida, Seu Luís, na semifinal – uma verdadeira muralha negra em campo com seus botões do Vasco; e o garoto ainda torcia para não ter de disputar a final com Seu Fernando, outro jogador experiente.

Tendo Aurélio atingido seu limite de toques, era a vez de Seu Luís. A bola se posicionara pouco além do meio de campo, em direção à área do Vasco. Procurando livrar-se do perigo e esboçar um contra-ataque, o idoso, com sua palheta, impulsionou um botão para tirar o pequeno disco dali… mas acabou, numa careta, fazendo força demais, e o jogador acelerado voou sobre uma das peças de Aurélio, errando a bola.

– Falta! – avisou o avô Genaro, atento à partida de um dos lados da mesa.

De fato era, já que a regra estabelecia ser falta o choque de um botão com outro do time oposto. Contente com a sorte, o garoto se preparou para “chutar” o tiro livre rumo ao gol adversário. As disputas terminavam em cinco gols, e por enquanto aquela estava empatada em dois a dois. Qualquer vantagem era bem-vinda.

Tendo o botão posicionado, Aurélio preparou a palheta, olhos fixos na mesa…

E a peça se moveu com a velocidade certa, dando impulso à bola. O artefato atravessou Garrincha… passando pelo flanco do retangular goleiro adversário e estalando no interior da rede de plástico compondo o gol.

Aurélio vibrou, a torcida também. Três a dois.

Vibrou tanto, na verdade, que a mesa quebrou.

O garoto pulou de susto, impelindo-se para trás por instinto. Em milésimos de segundo descobriu que a amada Garrincha de seu avô não se partira ao meio devido à sua euforia… e sim porque algo caíra sobre ela. Algo no mínimo pesado. Cada metade do móvel pendeu e desabou para um lado, lascas de madeira e plástico voando ao redor. Um clamor de receio proveio daqueles que assistiam, ecoando quintal afora, enquanto também tomavam distância. Os botões do Vasco e do Palmeiras despencaram e rolaram pela área de serviço numa confusão preta e verde, alguns deles alçando voo tão alto que foram parar dentro da pia do tanque ou até passando por cima do varal erguido de uma ponta a outra do lugar.

Do lado oposto da mesa agora arruinada, Seu Luís mantinha-se imóvel, esboçando uma expressão facial cheia de medo e frustração, a boca aberta com o queixo ameaçando cair – impressão reforçada por seu maxilar enrugado e o papo de pele mole. Aurélio não tinha certeza se o que lhe causava comoção era o fim repentino da partida, ou a coisa que pulara sobre o jogo. Quando o garoto atentou-se melhor para ela, descobriu-se tomado pela mesma sensação.

O monstro parecia humano, o humano parecia monstro. Sua figura usava roupas de gente, porém rasgadas, de dentro para fora, como se seu corpo houvesse aumentado de tamanho sem que a camiseta, de mangas e peito partidos, e as calças, abertas nos joelhos, pudessem contê-lo. De quatro sobre os destroços de Garrincha, as mãos e os pés da criatura eram na verdade garras de presas afiadas, uma perfurando bem no meio um botão do Palmeiras, como se o plástico não passasse de papel, e outra enfiada em trapos de borracha azul do que um dia fora um chinelo. Aurélio olhou então para a cabeça do ser, que mantinha os cabelos pretos e o formato humano… mas que, na frente, tinha o rosto convertido numa espécie de focinho, com longos e dourados bigodes, semelhantes aos de um gato, estendendo-se para os lados. Encarou seus olhos brevemente… e, num momento de terror, percebeu que não possuíam pupilas redondas como as dos seres humanos, e sim fendas negras puramente felinas, que brilharam enquanto analisavam justamente o pobre Aurélio, transparecendo toda a fúria e violência de um invencível predador. A pele, para completar, assumira uma tonalidade estranha… dourada como os bigodes, com uma rala cobertura de pelos e salpicada de manchas que misturavam tons negros e marrons. Tal aspecto havia tomado toda a superfície do corpo do “homem”… terminando numa cauda grossa, que ondulava traiçoeiramente para lá e para cá na altura da cintura.

Gritos vieram dos espectadores, e Dona Lídia desmaiou. O menino gelou, sentindo o coração bater tão forte em seu peito que pensou que ele logo lhe subiria pela boca e pularia através de seus lábios com um alto grito de “Salve-se quem puder!”: estava diante de um homem-onça; e ele não aparentava estar disposto a fazer amizade com ninguém ali, principalmente Aurélio.

Num primeiro momento, o jovem não tentou imaginar a razão de aquela coisa estar ali. Só queria imaginar como escapar dela – principalmente quando, ainda de quatro, ela voltou o corpo parte humano e parte felino totalmente em sua direção, abrindo a boca repleta de fileiras de dentes afiados como navalhas; um grosso fio de baba a escorrer dela revelando que o monstro com certeza tinha fome.

Trêmulo e suando, Aurélio continuou a recuar, agora a passos lentos, na direção do muro do quintal. Encarava os olhos de fenda da criatura – por mais que fazer isso o deixasse ainda mais amedrontado – pensando numa maneira de domar, tranquilizar ou, em último caso, enfrentar o inimigo. Ao menos, daquela forma, conseguia afastar a fera das outras pessoas que ali estavam – principalmente do avô, que assistia a tudo abismado.

Só então notou, num inesperado momento de raciocínio e observação coerente, que o primo do Tomás da farmácia havia simplesmente evaporado do local… E, lembrando-se das roupas que o desconhecido usava, tirou a sinistra conclusão de que o tal primo havia justamente se transformado no homem-onça!

A criatura, emitindo um leve e medonho rugido conforme encurralava Aurélio, pareceu mesmo se esquecer dos demais alvos em potencial – dando oportunidade para que saíssem do quintal por dentro da casa, chorando ou berrando. Os filhos de Laerte carregavam Dona Lídia, e Tomás também debandou depois de lançar um olhar de extremo inconformismo na direção do parente transmutado. Ali só permaneceram o avô Genaro e Seu Luís, ainda estático como se sua capacidade de se mover houvesse sido quebrada junto com a mesa. Dava um belo petisco de onça daquela maneira, porém a atenção do monstro estava toda focada em Aurélio. Por algum motivo específico ou mero azar, o adolescente lhe parecia prato mais saboroso.

O aturdido menino seguiu andando de costas, até que suas mãos tatearam de súbito a superfície áspera do muro atrás de si. Fim da linha. O homem-onça encurtou num piscar de olhos a distância que o separava da presa, aumentando o tom do rugido. Dobrou as pernas traseiras, deixando claro estar prestes a dar o bote. Aurélio fechou os olhos, sentindo uma gota de suor lhe escorrer pelo meio do rosto, sobre o nariz, e escorregar por seus lábios, deixando neles um gosto salgado. Seria esse o sabor da morte? Bem, sempre achara a vida doce, apesar de todas as dificuldades, então fazia sentido ser o contrário…

Sem coragem de ver, já podia sentir as garras da fera sobre si… quando ouviu algo diferente, inesperado.

 

Cadwch draw o fachgen, anghenfil erchyll!

 

A voz era masculina, idosa, mas não se parecia em nada com a do avô ou a de Seu Luís. Apesar da língua estranha e de difícil pronúncia, a boca de fosse lá quem tivesse dito aquilo aparentava estar bem habituada a usá-la. Parcelas de segundo se passaram sem que Aurélio fosse massacrado pelo algoz, levando-o a, timidamente, abrir os olhos. Tremendo, viu o monstro ainda diante de si – infelizmente não era um pesadelo – virando-se na direção da mesa de botão quebrada. À frente dos dois senhores que haviam permanecido na área de serviço, um terceiro surgia, mantendo um dos braços esticados na direção da fera. O garoto reconheceu-o imediatamente, pela roupa e os óculos, como sendo o velho Campbell do antiquário. Tinha o rosto vermelho e suado, ofegando, e conservava a bengala firme na mão que mantinha baixa… embora, misteriosamente, não parecesse precisar mais dela para ficar de pé.

Um momento de puras dúvida e estranheza veio em seguida, Aurélio compreendendo menos ainda o que acontecia; Genaro e Luís nem perto disso. Até a besta aparentava confusão, soltando um rápido som de sua garganta felina que o jovem poderia jurar ter tom interrogativo.

Campbell era o único que não pestanejava, braço ainda erguido rumo à criatura. Talvez houvesse se transformado com o calor do momento, mas… se ele na verdade tivesse sempre sido daquele jeito, então conseguira fingir bem, muito bem.

De repente, o homem-onça resolveu acabar com o impasse, investindo como um touro bravo na direção do inglês – revelando pela primeira vez toda velocidade e força que podia empregar num ataque. O avô de Aurélio e seu adversário no jogo de botão instintivamente se afastaram do caminho, um para cada lado, mas Campbell o fez apenas no último momento… dando um mero passo à direita quando o monstro estava a meros centímetros de atingi-lo. Por consequência, a fera passou direto, indo tropeçar e trombar nos pedaços de Garrincha, partindo ainda mais os restos de madeira e os braços e pernas peludos escorregando desajeitadamente nos botões que permaneciam jogados pelo piso. Aurélio percebeu que o dono do antiquário sorria. Aquilo fizera com que ganhasse tempo.

O que ocorreu a seguir foi algo que o garoto esperara apenas ver em filmes de fantasia ou histórias similares; e não soube, logo após terminar, se decidia acreditar mesmo em seus olhos ou reclamar da qualidade dos efeitos especiais. A bengala presa à mão do senhor Campbell começou a brilhar – a luz branca, apesar de breve, quase cegando Aurélio… enquanto o objeto misteriosamente se alongava para cima e para baixo, a curva do cabo se endireitando e logo tornando-se apenas reta. O artefato, agora tomado por claridade menos intensa, continuou se expandindo até ficar quase da altura do próprio idoso, esculpido em madeira sólida. Havia sobre sua superfície alguns nódulos e imperfeições, como se a haste compusesse na verdade um extenso galho de árvore, mas Aurélio queria mesmo era saber o que Campbell faria com aquela estranha peça.

Enquanto isso, o homem-onça já se recuperara. Erguendo-se sobre as pernas num gesto de desafio, rugiu para demonstrar que daria início a um novo ataque. O velho inglês, firme, apenas apontou levemente o bastão de madeira – que Aurélio logo deduziu ser alguma espécie de cajado – na direção da besta. Esta partiu em sua direção, ganhando velocidade e lançando mais botões e lascas para o ar… dando, no entanto, tempo para que Campbell sussurrasse:

Oh, Duwiau, roddwch i golau at anrheithio hwn creadur o tywyllwch!

Nova luz tomou uma das extremidades da haste, mas desta vez se deslocando adiante, como um projétil, na direção do homem-onça. A esfera de claridade amarelada, similar a um pequeno sol, atravessou a área de serviço flutuando em linha reta a pouco mais de um metro do chão, rumando diretamente para o monstro… que simplesmente explodiu, em cinzas e claridade, ao se chocar com o disparo, centenas de fragmentos chamuscados voando ao redor – inclusive sobre Aurélio e os dois outros velhos – e então se precipitando lentamente rumo ao solo como se estivesse havendo um incêndio em algum lugar da vizinhança.

Tendo os cabelos pintados de cinza pela vagarosa chuva de fragmentos queimados, Aurélio abriu a boca, porém não conseguiu falar. Tentou caminhar na direção de Campbell, e suas pernas não se mexeram – sabe-se lá se por mágica ou por medo. Sem saber o que pensar, teve a opção de continuar testemunhando os acontecimentos. Viu o cajado do inglês voltar a brilhar, encolher, curvar-se numa das pontas… e tornar a ser uma mera bengala.

O avô Genaro correu então rumo ao neto – indeciso, ao chegar mais perto, sobre se deveria ampará-lo com um dos braços ou abraçá-lo como nunca por ter sobrevivido – acabando por escolher a segunda opção. Enquanto tinha seus ossos apertados pelo idoso, Aurélio, ainda atônito, observou, por cima do ombro de Genaro, que Campbell se aproximara do amedrontado Seu Luís… e murmurava algo diante dele, fitando-o nos olhos, sem que o menino conseguisse entender o que dizia ou a situação em si – mas nesse último caso isso já estava se tornando quase uma rotina.

O que importa é que, quando o inglês terminou, o perdedor no futebol de botão – já que afinal o placar terminara em três a dois antes do desastre – simplesmente saiu andando para fora do quintal, desaparecendo pela porta da casa… com extrema calma, andar vagaroso e membros relaxados – como em algum tipo de transe. Aurélio lembrou-se de um filme em que agentes do governo usavam um aparelhinho de flash para apagar a memória das pessoas. Não era preciso refletir muito para concluir que houvera caso similar ali. E só esperava que o até então bondoso e gentil senhor Maxwell Campbell não fizesse aquilo com ele também…

Mas não. Chegando mais perto, o velho vendedor de antiguidades simplesmente parou diante do jovem e ficou olhando-o, com uma expressão misturando preocupação e pena que conseguiu deixá-lo extremamente incomodado. O avô, por sua vez, logo terminou o abraço e também se manteve de pé diante dele, transparecendo pelo rosto, todavia, um sentimento diferente: culpa.

– Aurélio… – começou, cabisbaixo. – Nós precisamos conversar.

Pois é. Precisavam mesmo.

 

Por onde começar? Não era todo dia que um monstro como aquele aparecia no quintal e estragava o campeonato de botão – pior ainda, por pouco não estragando a própria vida de Aurélio. Eles entraram na casa, atravessando em silêncio o corredor levando à cozinha. Aparentemente, nenhum dos visitantes permanecia ali, tendo debandado para longe diante da ameaça incompreensível que haviam encarado há pouco. O garoto, cheio de cinzas de homem-onça, só esperava que ninguém chamasse a polícia – e essa preocupação também era evidente pelos semblantes dos dois adultos que estavam com ele. Ter mais problemas naquela tarde infernal com certeza era algo indesejável.

– Graças aos deuses você tem uma casa de cômodos largos, Genaro… – murmurou Campbell enquanto rumavam para a sala, frisando bem o que julgava ser uma qualidade.

Adentraram o recinto, com o avô, cansado, rumando até o sofá e nele se sentando meio esparramado. O inglês aguardou, imaginando que Aurélio gostaria de se acomodar ao lado de Genaro, mas para sua surpresa o adolescente alojou-se no chão, sentado entre a TV e o sofá, virado para este último com as pernas cruzadas e uma expressão bastante exigente. Era louco agir com tanta naturalidade depois do que havia acontecido, mas mesmo assim conseguia sossegar ali como se estivesse prestes a ouvir uma história – e sabia que, de certa forma, aqueles dois lhe contariam uma história no mínimo um pouco longa, para conseguirem explicar o que exatamente acabara de ocorrer no quintal. Desse modo, Campbell inseriu-se no espaço vago ao lado do avô, voltando também sua atenção para o menino. Calados, os dois senhores esperaram as perguntas.

– O que foi aquilo que me atacou lá fora? – quis saber Aurélio.

Genaro parecia se sentir desconfortável, mas o dono do antiquário respondeu imediatamente:

– Chama-se Kanaima. É um espírito maligno capaz de possuir pessoas e então fazê-las assumir formas de diversos animais, como uma onça. Quando dominadas, as vítimas se tornam selvagens e incontroláveis, atacando quem estiver pela frente. Kanaimas são comuns na floresta amazônica, e bastante temidos pelos índios.

Aurélio custava a aceitar que poderia existir uma criatura como aquela – na verdade, até poucos minutos antes acreditava que magia e monstros eram coisas apenas da imaginação e da ficção, porém tudo que presenciara obrigava-o a mudar rapidamente de ideia. Ainda assim, a explicação de Campbell não fazia sentido.

– Se é comum na Amazônia, o que fazia aqui, no Rio de Janeiro, a milhares de quilômetros de distância? – o garoto questionou.

Ao invés de responder, o inglês se voltou para o avô, fazendo-lhe outra pergunta:

– Genaro, de onde Tomás disse que era aquele primo dele mesmo?

O idoso tentou se lembrar por um instante… E ao conseguir obter a informação, assumiu expressão de assombro, ligando os pontos enquanto respondia:

– Do Amapá.

Isso tornava a coisa toda mais plausível, mas não totalmente, como Aurélio logo fez questão de destacar:

– Mas por que veio para o Rio? E por que parecia querer atacar justo a mim, ao invés de qualquer outra pessoa que estava no quintal?

Campbell trocou um breve olhar com Genaro, respirou fundo e, encarando firmemente o menino, esclareceu:

– Alguém dominou aquele espírito com magia para que cumprisse suas ordens. Realmente, os Kanaimas não agem assim, a não ser que estejam sob comando de alguma outra entidade. E esta, no caso, enviou-os Brasil afora para caçar você, Aurélio. Existe uma pessoa que, mais do que tudo no mundo, quer vê-lo morto…

E, tomando mais ar, o inglês pronunciou o nome que, por mais que já conhecesse há séculos, sempre lhe trazia desconforto, como se pudesse carregar todo mal e intriga do mundo consigo:

– Morgana Le Fay.

 

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